Satolep revisitada

por Tom Magalhães

Satolep me deu liberdade para falar da cidade que eu idealizava

Com mais de 30 anos de carreira, nove discos e três livros, Vitor Ramil lança agora “Foi no Mês que Vem”, disco duplo com versões novas das suas principais canções, e um songbook acompanhado de biografia. O momento é, portanto, de olhar para trás e avaliar o que representam o percurso e a obra do nosso grande artista pelotense.

Há um momento chave na carreira de Vitor Ramil quando ele deixa o Rio de Janeiro e volta para Pelotas, simbolicamente acompanhando a busca da “estética do frio” que começava a se formular na sua cabeça, e viria a se expressar no ensaio de mesmo nome. A ideia era procurar, no clima frio, as bases para uma estética que não pusesse o sul na periferia do Brasil, mas no seu próprio centro. Sua discografia, portanto, pode ser dividida em dois ciclos, antes e depois dessa virada que se concretiza em “Ramilonga”, de 1997, mas já se anunciava no disco “À Beça”, de 1995. Vitor tinha lançado três discos antes disso, o adolescente “Estrela, Estrela”, o radical e expansivo “A Paixão de V Segundo Ele Mesmo”, e “Tango”, em que investe nas letras.

Com o retorno a Pelotas, a estética do frio tem suas primeiras manifestações na novela “Pequod” e em “À Beça”. O disco, paradoxalmente, é quente, movimentado. Vitor conta que seu público, que na época esperava dele hinos como “Loucos de Cara” e “Joquim”, recebeu mal canções de estrutura mais tradicional como “Não É Céu” e “Foi no Mês que Vem”. Como Bob Dylan quando ficou elétrico, Vitor foi acusado por fãs de ter se vendido, ficado pop. Na verdade, a busca era por liberdade. “Eu achava que tinha que experimentar com coisas variadas. Deixei claro que eu não ia me escravizar ao gosto do público.”

O choque valeu a pena. Conquistar essa liberdade permitiu a Vitor explorar o universo da canção popular mais a fundo. Pouco depois, ele apresenta, em “Ramilonga”, uma modernização sem precedentes da canção gaúcha, até então freada por um tradicionalismo exacerbado. A seguir vem “Tambong”, o disco essencial dessa nova fase, em que a estética do frio se expande além do universo da milonga, canibaliza a canção brasileira, e a reinterpreta sob uma nova luz. Seguem “Longes” e “Satolep Sambatown”, expandindo esse movimento em diferentes direções – o primeiro, para uma introspecção quase mórbida; o segundo, em uma abordagem mais popular e brasileira. Finalmente, em “Délibáb”, Vitor retorna à milonga na sua forma mais pura e concisa, com poemas de Borges e João da Cunha Vargas musicados ao som do violão pampiano/erudito de Carlos Moscardini.

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Uma característica da discografia de Vitor é que canções de discos anteriores reaparecem frequentemente em novas roupagens. “Estou sempre procurando a gravação ideal de uma canção”, conta. Um pouco por isso, um disco que estava destinado a meramente ilustrar um songbook acabou se transformando na ambiciosa empreitada de regravar, reformuladas e com muitas parcerias, as principais canções de uma carreira inteira. “Selecionei muito em função do que eu consegui nessas canções em termos de letra e música. O que eu consegui com elas ao redor dos anos, que de certa forma consolidou a minha linguagem. O que é que foi, e que vai estar aí no mês que vem?” “Foi no Mês que Vem”, financiado no modelo “crowdfunding”, tem um ar de festa familiar, de celebração do que passou (que transparece muito bem no texto “Kreidimania”, publicado na página de Vitor no facebook). Na mesma onda de comemoração entre amigos, os shows do novo disco terão canções escolhidas em função das participações geograficamente disponíveis, dependendo do local.

Mas o disco, apesar de todo o ar de balanço geral, não encerra um ciclo. O seu sucessor, que será inteiro de poemas, musicados por Vitor, da também pelotense Angélica Freitas, reconhecida nacional e internacionalmente com seu livro “Um Útero É do Tamanho de um Punho”, continua o trajeto desenvolvido até aqui. A novidade, Vitor adianta, é a introdução do seu lado engraçado que, embora aparecesse entre as canções nos shows, estava até então ausente nelas. “A Angélica me permitiu retomar o meu personagem, o Barão de Satolep, que nunca teve o seu disco gravado”, conta, lembrando o alter-ego humorístico com quem dividia o palco durante shows mais antigos. “As canções recuperam, via o humor da Angélica, o meu humor também”.

Inventando a cidade

Quando comecei a prestar atenção em Vitor Ramil pela primeira vez, foi por uma busca de identidade. Precisava – e isso me parece mais claro agora do que então – de ferramentas para compreender a minha cidade. “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”, diz a frase célebre de Tolstói. Percebi que me identificava com muitas coisas, mas quase nenhuma local. Busquei em Vitor lentes para ver Pelotas e, com alguma surpresa, vi uma nova cidade surgir. Ela não estava situada no tempo ou no espaço, e suas ruas portavam uma camada do irreal. A subjetividade radical da poética de Vitor diferenciava pouco experiência e ilusão. À medida que eu voltava ao autor para escrever esta matéria, essa maneira de ver retornava.

Em Pelotas, se há um artista que se propôs ao papel de pensar a cidade, é Vitor Ramil. A ideia de Satolep, desenvolvida desde muito jovem, lhe permitiu dar à cidade uma dimensão mítica, ao mesmo tempo interpretativa e propositiva. “Eu gostava de ter a cidade em mim. Mas com a seguinte reserva: era Satolep, não era Pelotas, porque Satolep sempre me deu liberdade de falar dessa cidade que eu idealizava, como eu queria que ela fosse.” Mais tarde, a ideia da estética do frio o ajudou a repensar o próprio trabalho, conectou artistas e redesenhou drasticamente o mapa cultural do Brasil para muita gente. Essa virada cartográfica (pense naquela famosa gravura do uruguaio Torres García, que se resume ao mapa da América Latina virado de ponta cabeça) se deve a uma das ideias centrais da estética do frio: a de que não estamos à margem, mas no centro de uma outra história.

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Vitor “está nesse centro, escrevendo e reescrevendo Satolep e Pelotas, o Rio Grande do Sul e o Brasil”, escreve o professor Luís Augusto Fischer, em seu ótimo artigo que acompanha o songbook. Fischer fala sobre como “o frio ganhou direito à existência” através de Vitor. Sublinha dualismos entre tradição e invenção, localidade e cosmopolitismo. É bibliografia sensacional para quem se interessa em pensar sobre nossa identidade cultural.

Por isso Vitor é tão importante entre nós. Não só porque suas canções são da mais alta linha (não ficando ele atrás de um Lenine, por exemplo), mas porque Vitor povoou o campo simbólico da própria arte. Ele se adiantou a quem poderia decidir sobre a sua obra (descrever, especialmente em arte, é decidir) e propôs uma série de conceitos que permitiram não só a nós interpretá-la, mas a ele desenvolvê-la de maneiras mais ricas. Ao fazê-lo, Vitor gerou também uma paisagem simbólica do Sul, um aparato conceitual através do qual podemos articular novas ideias, reinterpretar nossa cultura e as influências que nos cercam. Esse aparato não nos separa – como às vezes se interpreta erradamente – do restante do Brasil. Pelo contrário: através da fixação de uma identidade local, o diálogo se torna possível.

Conexões do frio

Há em toda a obra de Vitor Ramil a consciência de uma subjetividade radical. Essa consciência da solidão, tão oposta ao senso de coletividade que caracteriza regiões mais ao norte do Brasil, tão adequada ao laicismo que compartilhamos com os uruguaios, é uma parte central do que constitui a estética do frio. Não obstante, uma das grandes contribuições dessa estética foi justamente unir as pessoas, fomentar a coletividade e o diálogo.

No documentário “A Linha Fria do Horizonte”, vê-se músicos como os irmãos Jorge e Daniel Drexler, Ana Prada, Pablo Grinjot, reunidos em torno do tema. “As pessoas se acercaram, trouxeram novas ideias”, conta Vitor. Para alguns argentinos e uruguaios, para quem a milonga tinha se congelado como ritmo rural, a nova abordagem de Vitor foi uma forma de reabilitação. Ao mesmo tempo que ele redescobria a milonga sob a ótica da MPB, os irmãos Drexler buscavam a influência de João Gilberto. Mesmo artistas plásticos volta-e-meia aparecem partindo da influência da estética do frio, como é o caso de Nelson Felix e suas instalações espalhadas pela América Latina.

“Eu nunca transformei a estética do frio num ‘ismo’, como o tropicalismo”, conta Vitor, “Os irmãos Drexler criaram o templadismo (referência ao clima temperado), que é uma espécie de ‘ismo’ para a estética do frio, mas eu sempre achei que se eu fizesse isso eu ia engessar a ideia. Eu queria que ela ficasse em aberto, que as pessoas pirassem em cima dessa ideia, trouxessem suas contribuições”.

Estou sempre procurando a gravação ideal de uma canção

No seu romance “Satolep”, Vitor deu vazão ao que era um desejo seu: fazer parte de um grupo. Com o tempo, a estética do frio fez do desejo realidade. Não só os irmãos Drexler, com quem não raro se encontra, mas gente boa de Pelotas mesmo acabou se aproximando do campo gravitacional de Vitor. A matéria de Ronaldo Bressane para a Ilustríssima, que circulou bastante na internet cultural pelotense, formava uma trinca com Vitor, Angélica Freitas e o cartunista Odyr Bernardi. Os três, além de estarem colaborando com um “Livro das Ilusões Pelotenses”, têm em comum outros pontos. Todos fizeram o estranho caminho de voltar dos grandes centros para produzir em Pelotas. Todos são reclusos e aproveitam o ambiente pacato para imergir profundamente no que produzem. Formou-se em Pelotas essa cena sui generis: um grupo de artistas que não saem de casa – mais ou menos o oposto do que esperamos de um ambiente cultural efervescente.

“Essa cidade é muito favorável à criação, ao ambiente criativo. Essa coisa da reclusão é um traço nosso. Não é à toa que a gente se aproximou”, comenta Vitor. Esse retraimento não é só um modo de vida – tem a ver com uma postura diante da arte. Angélica fala em “contenção” no processo criativo, o que lembra as “sete cidades” de Vitor: “rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza e melancolia”. A demora sobre a obra, ao contrário da criação espontânea e bagunçada, está relacionada com a reclusão e com a volta ao ambiente pacato do interior.

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“No Rio, eu estava num apartamento que eu tinha alugado, mas aquilo não tinha muito sentido para mim. ‘Ah, tu veio aqui para vencer.’ Mas o que é vencer, exatamente, na vida? É aparecer na televisão? É fazer amizade com artistas famosos? Aqui em Pelotas eu me sinto crescendo sempre a cada momento, porque o que está crescendo em mim sempre é o desejo de criar. É como se fosse uma coisa em permanente construção, e se eu me afasto daqui é como se ela se quebrasse”, conta Vitor.

Quanto ao futuro da estética do frio, Vitor revela que ela ainda está longe de ficar estática: “Eu agora estou me preparando para voltar a escrever sobre a estética do frio, porque ela já está em um estágio em que ela mudou. Ela já está sendo outra coisa, se desenvolvendo. Ela já está, na verdade, se tornando o que ela era.”

Fotos: Pedro Dias

As fotos antigas são provenientes do Almanaque do Bicentenário de Pelotas

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